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Entretenimento ou Cultura?

29/05/2010

Marise Siqueira*

A importância econômica da cultura no mundo (10% do PIB mundial e 6% do PIB do Brasil) é estimulante para quem está envolvido, direta ou indiretamente, com atividades culturais, mas causam preocupação as distorções que essa realidade acaba por gerar. É o caso do surgimento de uma nova área do campo do direito, o Direito do Entretenimento, assim denominado por vários escritórios de advocacia que anunciam atuação na nova especialidade. Além de cursos de especialização, sem controle e sem pré-requisitos.

Esse dito Direito do Entretenimento pretende regular as relações jurídicas nas áreas da cultura, desporto, lazer, comunicação e turismo. 

Vamos por partes.
No Brasil, de acordo com o IBGE (Cultura em Números – base 2003/2005), 5,4% das empresas formalmente constituídas e 3,5% dos empregos assalariados estão ligados ao setor cultural. Como o investimento em cultura passou de 0,2% para 1% do orçamento da União entre 2003 e 2010, esses indicadores já merecem atualização para índices superiores. 

Após a aprovação da PEC 150/2003, em tramitação no Congresso Nacional, que vinculará obrigatoriamente 2% do orçamento da União, 1,5% do orçamento dos estados e 1% do orçamento dos municípios para investimento em cultura, os números da economia da cultura tendem a crescer de forma absolutamente significativa. 

E mais, com a implementação do Vale Cultura, programa através do qual o trabalhador receberá um vale de R$ 50,00 por mês para comprar livros, CDs, assistir a espetáculos de dança, teatro ou cinema, dentre outras atividades culturais, serão injetados aproximadamente R$ 7 bilhões por ano na economia da cultura.

É natural, assim, que o aquecimento dos negócios na área da cultura desperte o interesse de profissionais que possam fazer parte desse novo cenário. 

Mas é exatamente agora que surge uma questão essencial. Esse novo cenário pressupõe conhecimento mínimo da matéria por quem queira nela atuar.

A questão não pode resumir-se à nomenclatura de uma nova área de atuação do Direito - o profissional especializado na área do direito do entretenimento não é, necessariamente, especialista na área da cultura.

São coisas absolutamente distintas. 

Na visão fiscalista, ou voltada para a lógica clássica do mercado, a cultura é um bem reduzido ao mundo glamuroso do entretenimento.

Cultura é mais do que entretenimento, diversão, lazer - disso não se tem qualquer dúvida. Cultura é um bem social, - essencial e indispensável - que deve ser compreendido como tal, sendo dever do Estado a garantia do acesso dos cidadãos e dos artistas ao fruir e ao fazer cultural, conforme previsto no art. 215 da Constituição Federal.

Cultura não está à venda, não se resume a eventos, não é necessariamente paga, ainda que seja capaz de gerar muita riqueza e/ou se constitua na própria riqueza de uma nação.

Diante dessa constatação cabe questionar a quem coube, no Brasil, a escolha da nomenclatura Direito do Entretenimento, importada dos Estados Unidos, em detrimento do Direito da Cultura, como é largamente difundido na Europa.

O Direito do Entretenimento surgiu para atender as necessidades jurídicas das empresas que centraram sua participação na indústria cultural unicamente através da renúncia fiscal, projetando seus investimentos baseados em seus departamentos de marketing.

Esse equívoco submete o direito à criação e fruição artístico-cultural e o direito à formação do pensamento crítico à lógica de mercado como única verdade, estigmatiza e pasteuriza a criação e estabelece um padrão que renuncia a diversidade de um continente chamado Brasil.

Os artistas, pesquisadores e trabalhadores da cultura em geral conquistaram o direito de ter reconhecida sua atuação profissional pelo Poder Público e pela sociedade civil, consolidando o entendimento de que cultura não é apenas entretenimento e diversão, e sim um bem social, necessário e essencial, ao qual os cidadãos e artistas devem ter acesso garantido mediante implementação de políticas públicas. 

O cenário atual e o crescimento econômico projetado para o Brasil, com impacto direto na economia da cultura, não podem ser desvirtuados atendendo unicamente aos interesses dos teóricos do pragmatismo.

A tentativa de instituição da perversa reserva de mercado acaba por impor aos trabalhadores das artes e da cultura o rótulo vazio de fazedores de diversão e entretenimento.

*Advogada

Maio 2010

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